Nós duas acordamos quando o sol já estava alto, indicando que o horário do almoço estava próximo. Fomos para a casa de Midori andando e conversando no caminho.
- Então Yuki, gostou de aprender a dançar?
-Até que foi divertido. Mas ainda acho que não levo jeito.
- Ah, leva sim! Você pegou muito rápido os movimentos que a Emma estava mostrando
- E você Midori? Me disse que não sabia dançar, mas sabia sim! Você dançava tão bem quanto a Emma.
- Se eu tivesse dito que saberia você não iria querer tentar Yuki.
Midori me conhecia muito bem. Eu não gostava quando aparentava que todo mundo sabia de algo e eu não entendia. Me deixava um pouco ansiosa.
- Você chegou muito tarde? - perguntei a Midori, sem esperar a resposta.
- Um pouquinho - Ela corou levemente, o que era uma novidade. Dificilmente eu conseguia fazer a Midori ficar sem graça ou com vergonha sobre alguma coisa, geralmente é o contrário - Você já estava dormindo, não queria te acordar.
- Não é incômodo nenhum qualquer coisa que venha de você Midori - disse a ela.
Ela mexeu um pouco nos seus cabelos longos, segurando uma mecha de cabelo entre os dedos. Ela estava pensativa sobre algo. Quando éramos mais novas, dificilmente ela ficava submersa em seus pensamentos, mas desde que entramos no ensino médio, seus momentos de silêncio tinham ficado mais frequentes. Problemas de família, na maioria das vezes. Eu não sabia o que era isso. Só sei que quando chegasse a hora certa, ela me contaria o que tanto a preocupava.
Logo chegamos à casa dela e sua mãe estava à nossa espera, nos recebendo na porta com um sorriso.
- Midori-chan, Yuki-chan, bem vindas de volta! Haru está aqui hoje!
Haru é a irmã mais velha de Midori, mas eu só conhecia por foto e na chamada de vídeo que tivemos no início da semana. Elas eram muito parecidas, com exceção de que os cabelos de Haru batiam em seus ombros, enquanto os de Midori quase chegavam na cintura. Fomos almoçar. Por ser de uma família tradicional, eles seguiam as tradições do Japão mesmo fora do país. O estilo da casa, as regras de etiqueta, a alimentação.... O que eu não sabia fazer Midori me ajudava.
- Yuki-chan, os sapatos estão servindo bem? Tem certeza que não precisa de mais alguma coisa? - Mãe de Midori me perguntou.
- Estão sim dona Natsuki - respondi corando como sempre - não precisa de se incomodar.
Ela sorriu discretamente. Midori se parecia muito com ela.
- Midori - o pai dela falou - leve sua amiga para conhecer a casa depois. Dependendo do que ela quiser cursar na faculdade, podemos arrumar algum cargo para ela na empresa. Aproveite a visita de sua irmã para vocês conversarem a respeito.
Não entendi o que ele queria dizer. Pensando bem, Midori não costumava falar muito do que seus pais faziam. Acho que ela evitava o assunto. Não entendo os motivos, afinal ela parecia ter uma família bem feliz. Ela tinha uma casa bem grande, uma mãe amorosa e uma irmã companheira. Eu não tive nada disso durante minha vida, únicos afetos que tive foram de poucas irmãs e de Midori. Então para mim era difícil entender o que ali poderia incomodar ela.
Após o almoço, Midori e sua irmã Haru me mostraram tudo da propriedade. Além da casa principal, havia uma casa menor usada para reuniões de negócios dos pais delas, um espaço para o banho tradicional, e cercando cada espaço da propriedade, um belíssimo jardim. Haviam pedras espalhadas, um pequeno riacho correndo por todo o terreno, uma ponte de pedra, flores, árvores e postes para iluminação à noite. Haru parecia mais à vontade para falar dos negócios de sua família e Midori estava um pouco incomodada, colocava a mão na cabeça algumas vezes para tampar o sol e disse que iria só tomar um remédio e voltava. Fiquei sozinha com Haru.
- Yuki-chan, imagino que Midori-chan nunca comentou a respeito do que trabalhamos, não é?
- Não, nunca comentou.
- Sabe o motivo dela ser tão fechada quando o assunto é família?
Aquilo atiçou minha curiosidade. Mesmo conhecendo Midori há pouco mais de 10 anos, nunca me atrevi a perguntar as coisas que ela naturalmente não me contava. Ela era muito fechada em alguns aspectos.
- Nossa família tem tradição em trabalhar com peças mecânicas para robôs. Babás inteligentes, essas coisas. A maioria são para auxiliar em tarefas pesadas ou perigosas aos seres humanos, mas estamos ampliando também para auxílio doméstico.
Eu já tinha visto alguma coisa dessas em uma das fotos que Midori me mostrou uma vez. Estava na foto com a Haru e com o marido dela.
- Dessa forma, cada membro da família fica em algum país para expandir os negócios. Como você pode ver, a empresa do meu pai lucra muito, por isso temos uma vida muito confortável, mas isso requer um preço que para Midori parece ser mais alto.
- Como assim Haru? - eu não sabia o que era este "preço", mas não me parecia algo muito bom ou justo.
- Nós duas, como herdeiras da empresa, não podemos seguir uma carreira diferente. Não podemos ser exatamente quem nós quisermos. Isso inclui o curso da universidade e, obviamente, os pretendentes para o casamento. Meu casamento foi arranjado quando eu tinha a idade de Midori. Ela não quer ter o mesmo futuro que eu tive, mas temo que ela não conseguirá escapar, afinal de contas, a ideia é que os negócios permaneçam na família, dessa forma casamos com um parente ou no máximo, com algum herdeiro de uma empresa subordinada às nossa.
O almoço começou a embrulhar no meu estômago. Aquilo parecia ser algo muito cruel. Não poder escolher a profissão nem com quem a pessoa passaria o resto da vida? Era algo muito horrível, mesmo com todo o dinheiro e com o sucesso da empresa.
- Porém - Haru continuou - O que Midori não sabe é que eu e meu marido estamos investindo em um ramo que ninguém da nossa família quer arriscar, e que eu sei que Midori vai gostar.
- E qual é?
- O de próteses humanas. Eu e meu marido estamos firmando parceria com uma outra empresa para investir na construção e no desenvolvimento de próteses humanas. Tenho certeza que quando Midori souber, ficará extremamente feliz. Quando pequena ela dizia que queria ser mecânica de gente. Mesmo que ela não possa ser médica, ela ficará feliz em saber que poderá desenvolver próteses.
Lembrei de Midori pequena, tentando reconstruir meu baú quebrado e chorando porque ela não conseguia. Lembrei das irmãs brigando com as garotas do quarto que quebraram o meu baú, mas nada fizeram para substituí-lo. Ele continuou quebrado e Midori continuou chateada por não poder fazer nada. Desde pequena ela tinha influência da família do que faria no futuro.
- Por favor não conte à Midori sobre essa novidade, Yuki. Estamos providenciando um estágio com um dos engenheiros da empresa parceira, mas só contarei ao papai e a ela quando estiver tudo acordado.
Assenti com a cabeça. Ela logo mudou o assunto, pois Midori se aproximava:
- As roupas couberam bem em você, Yuki-chan?
- Er, sim, couberam, obrigada Haru - eu corei.
Midori chegou com uma bolsa de gelo na cabeça.
- Bati minha cabeça na mesa do meu quarto - ela disse, olhando para o chão. Mas eu conhecia Midori e sabia que aquilo era mentira.
Fomos para o quarto de Midori. Ele era grande, espaçoso, porém relativamente vazio. Tinha uma cama grande demais, uma mesa, uma estante com muitos livros e uma pequena estante com protótipos. Enquanto ela procurava algo pelo quarto, observei de perto as peças montadas, cada uma marcada com um ano diferente. Fiz as contas e a mais antiga batia quando Midori fez 7 anos e era uma peça simples comparada com a datada mais atual, do ano passado. Eram todas peças que pareciam ser parte do corpo humano. Um dedo, um joelho, um pé, uma mão.... As mais novas possuíam muitos detalhes, eram mais trabalhosas e eram mais parecidas com uma prótese real. Comecei a entender o que Haru disse que aquele ramo animaria Midori. Ela parecia gostar disso desde pequena. Pensando bem, mesmo com mais de 10 anos como sua amiga, percebi que conhecia muito pouco da Midori além da escola. Isso me entristeceu um pouco.
- Yuki! Ah, está vendo minhas montagens? Legais, não? - ela se aproximou de mim, ainda segurando a bolsa de gelo na cabeça, um pouco melancólica - Esse dedo eu fiz quando tinha 7 anos - disse ela apontando para a peça mais antiga - esse aqui era para ser um joelho, mas não consegui finalizar direito. Essa última que eu montei foi o pé e eu tentei modelar como se fosse um pé de verdade, com todos os ossos - ela apontou para o pé, que realmente era um modelo muito perfeito.
Apesar de estar falando com entusiasmo de seus modelos, senti que sua voz estava um pouco triste. Imaginei se a questão do que Haru comentou sobre o casamento arranjado seria uma realidade próxima para Midori e fiquei com um aperto no coração por ela.
- Yuki, posso te perguntar umas coisas?
- Claro Midori, você sabe que não precisa pedir permissão para perguntar nada para mim, sou sua amiga.
Ela me levou até sua cama e nós duas sentamos de pernas cruzadas.
- Como são as aulas nas áreas biológicas? Quais matérias você tem?
- Ainda estão relativamente fáceis comparadas com as que a gente tinha no colégio - respondi, surpresa com a pergunta. Ela não precisava pedir para perguntar aquilo - ainda não tive todas as aulas, mas temos morfologia, química 1, bioquímica, parasitologia geral, genética e biologia molecular. Estou tentando estudar todos os dias após as aulas para não deixar nenhuma matéria acumular. Na maioria das vezes, Emma estuda comigo. E as suas aulas?
- São muito mais difíceis que as do colégio. Temos cálculo 1, algoritmo 1, geometria 1 e física e química fundamental. Mesmo sendo menos disciplinas, a gente sai da aula com a sensação que o cérebro desistiu de pensar. - Ri da expressão que Midori usou. Era exatamente assim que eu me sentia após genética e parasitologia - e seus professores?
- São bem diferentes dos que davam aula no colégio... a maioria só fica falando sem parar. O professor Carlos de bioquímica é o melhor, na minha opinião. E o de biologia molecular dá pouca aula e prefere liberar a gente para estudar por conta própria. O de química ainda não conheci porque as aulas só começam semana que vem. E os seus?
- São iguais. Falam, falam, falam e depois passam uma lista de exercícios enorme para a aula seguinte. Acabo madrugando para terminar as listas ou acordo antes das 6h para dar conta de fazer tudo.
Eu sabia que Midori não gostava de acordar cedo, ouvi-la dizer quer acorda às 6h para fazer as atividades da faculdade mostra o quanto ela é comprometida, mesmo os que ela não goste de fazer.
- E sua cabeça Midori? Está melhor?
Ela segurou o gelo com uma das mãos e o colocou sob o travesseiro.
- Está - ela riu um pouco - acho que eu tomei mais bebida na festa do que pretendia - ela deu um sorriso sem graça.
- Aquela bebida horrível? Como você consegue? - ainda tinha resquícios na minha memória daquele álcool queimando minha garganta.
- Eu bebia um pouco escondido do copo da Haru quando tem as reuniões aqui em casa. Acho que ela já notou, mas finge que não vê. Meus pais se souberem, não vão me deixar sair mais. Só poderia tomar quando... - ela se silenciou, fazendo uma careta. Imaginei que poderia ser algo relacionado ao que Haru comentou mais cedo nos jardins a respeito do futuro de Midori. Dei esse espaço a ela.
- E seus colegas Midori? A gente ficou mais perto dos meus colegas na festa. Não conheci muitos dos seus.
- Ah, ainda não tivemos muitas oportunidades de nos conhecer. A gente sai meio atordoado da sala e as listas de exercícios são todas individuais. Achei que conseguiria conversar mais com eles na festa, mas o som estava muito alto para isso. E os seus?
- Já consigo identificar quais eu devo seguir para não me perder pelos corredores e quais não devo seguir - Midori fez uma cara engraçada nesse momento - ah, esses últimos costumam faltar nas aulas. E também tem a Emma, que foi a pessoa com quem mais conversei durante a semana e estudei junto.
- Sei... e aqueles dois bonitos que estavam com ela?
Eu corei à menção de Ray e de Phill. Nunca parei para conversar com eles, mas a beleza deles era de me desconcentrar.
- São do grupo de alunos que eu posso seguir para achar as salas, nunca nem atrasam. - Midori fez uma cara de surpresa e continuou esperando por mais informações. Preferi esperar ela dizer o que queria que eu dissesse.
- E o que você acha deles Yuki? - ela perguntou, levantando uma sobrancelha.
- São bonitos né? Me lembram daquele mangá que você levava para eu ler, o que a gente não sabe como termina - não consegui impedir minha pele de ficar mais vermelha do que estava. Tenho certeza que se fosse Emma, ela continuaria fazendo mais perguntas para ver até que tom eu ficaria.
- É, são bonitos mesmo... Andou pensando em algum deles?
Senti minha pele esquentar com a pergunta de Midori.
- Não.... Estava muito preocupada com as minhas matérias. Acho que vou ter que estudar mais genética e talvez parasitologia.
Midori suspirou, o que eu pensei que foi de alívio. Nós continuamos a conversar sobre as diferenças entre o colégio e a faculdade, sobre a liberdade que é estar fora do colégio e Midori disse que ouviu de algumas pessoas que estavam na festa de ontem que os alunos estavam entusiasmados para fazer outra.
Quando assustei, já estava escuro. Haru trouxe um lanche para nós e falou para eu dormir na casa naquela noite. Antes mesmo que eu pudesse protestar, Midori já tinha buscado uma toalha e uma muda de roupas de sua irmã para mim.
Após o jantar, Midori queria dançar um pouco mais daquelas músicas que tocaram na festa. Eu protestei, mas ela me convenceu a dançar com ela. Com muita paciência, ela me ensinou um pouco mais de como me mover como ela e Emma faziam e depois de mais de 2 horas, ela disse que eu estava muito melhor do que no dia anterior.
- Amanhã vamos treinar mais Yuki! Assim você vai poder aproveitar mais da próxima festa que tiver!
Eu já estava bem cansada quando fomos dormir, portanto nem conversamos até o dia raiar.
No domingo nós andamos pelos arredores da casa e dentro da propriedade da família de Midori e ela insistiu para a gente dançar de novo. Até Haru se juntou na brincadeira na parte da tarde. À noite, Haru voltou para sua casa e me deixou no dormitório no caminho. Até que tirar o final de semana para divertir com Midori foi muito bom, eu estava morrendo de saudades dela.