A vida nova fora do colégio de freiras era completamente diferente do que eu conseguia imaginar. Mesmo não precisando acordar muito cedo como no antigo dormitório e nem tinham as regras de limpeza e horários, ficar sozinha no quarto nem sempre era tão divertido como pareceu a princípio. Andar pelo campus foi ficando mais fácil com o passar da semana, mesmo e tendo perdido o mapa que a Irmã Irene me deu e logo eu não ficava (tão) perdida pelos corredores dos prédios. Também aprendi a reconhecer aos poucos nossos colegas de sala então era só segui-los que na maioria das vezes a gente acabava na sala certa. Muitas vezes a gente acabava em algum corredor errado. Alguns poucos colegas sempre iam para uma sala onde muita gente ficava matando aula, então aprendi a não seguir esses.
Mesmo com Midori por perto, nem sempre a gente se encontrava e logo eu comecei a sentir falta de sua presença nas aulas, horário de almoço e dormitório. Como meus horários eram de manhã e os dela eram à tarde, conseguíamos almoçar juntas poucos dias na semana e nos encontrar mais para o fim do dia. Tanto eu quanto ela já estávamos esgotadas, mas sua animação por conta da festa no fim da semana crescia.
Midori me ajudou no dia seguinte a arrumar o guarda-roupa. Ela separou as roupas que eu usaria na faculdade e guardou as mais bonitas e melhores para os passeios. No geral as roupas do dia-a-dia eram confortáveis e totalmente diferentes do que eu sempre usei. Nenhuma das roupas pinicava. Nenhuma roupa sumia "misteriosamente" do meu armário. Nenhum sapato era trocado "misteriosamente".
Conforme nós tínhamos nossas aulas, aprendi a chegar na biblioteca e encontrar os livros que os professores indicavam. Eu podia estudar na biblioteca ou no quarto. Comecei a frequentar mais a biblioteca principalmente porque Emma, a garota ruiva de olhos verdes brilhantes também ia com frequência lá. Ela gostava de manter a conversa comigo e isso foi aos poucos me deixando confortável. Era bom ter um rosto conhecido na sala ou nos estudos que não quisesse me passar a perna. Midori conheceu ela de longe e disse que ela parecia legal e confiável, então eu acredito no seu julgamento.
Eu fiquei com medo da aproximação da Emma ser puro interesse no fato de eu ficar no dormitório e assim ela pudesse organizar a tal festa, mas percebi que ela é gentil e animada com todos os colegas. Ela ajuda emprestando suas anotações para os que estão repetindo as matérias, ela ajuda a levantar a moral de todo mundo da sala. A semana se aproximava do fim, Emma já tinha conseguido reservar o espaço conjunto do dormitório para a festa e ela continuava a me convencer a estudar na biblioteca.
- Então Yuki, você quer fazer qual curso?
- Acho que vou ser professora. Na verdade ainda não entendi muito bem como a faculdade funciona.
Emma me explicou então que nós entramos na área de biológicas e que estudaríamos o ciclo básico por dois anos. Nesse tempo a gente pode participar de palestras, fazer estágios em diversos locais parceiros da faculdade para descobrir nossa vocação, fazer estágio com os professores para conhecer áreas diferentes... É bem diferente do que as irmãs ensinavam na escola.
-Ei, mas sabe? - Emma disse - ser professora é uma profissão muito legal também! - Sua animação era reconfortante - afinal de contas, se você for uma boa professora, você pode incentivar toda a sua turma a ser legal como você! - Ela concluiu com seu sorriso, brilhando.
- E você Emma, já sabe o que quer fazer depois dos dois anos de ciclo básico?
- Sim!! Vou fazer educação física! - comecei a entender porque ela achava legal ser professora - eu quero preparar crianças para competirem! Eu quero ser aquela professora que vai encontrar as crianças com talento e dar uma chance diferente para elas.
Emma brilhava enquanto falava. Ela tinha uma empolgação diferente, como se estivesse completamente apaixonada pelo futuro que ela planejou.
- E sabe - ela completou - um dos motivos de eu escolher essa faculdade é porque tem uma professora que trabalha com exercícios de alto impacto. Quero fazer estágio com ela.
Nós voltamos a estudar parasitologia. Depois de quase uma tarde inteira, nós duas decidimos que já tinha sido o suficiente e nos encaminhamos para o lado arborizado do campus.
- Emma, posso te perguntar uma coisa?
- Você já perguntou - disse ela saltitando ao meu lado.
Eu senti minhas bochechas esquentarem. Ela olhou para mim.
- Owwnnn, você fica corada quando tá com vergonha!! Que fofinha!!! - ela apertou de leve minhas bochechas - pode perguntar Yuki.
- Por que no primeiro dia você parecia conhecer os colegas de sala?
- Ah, porque a gente já se conhecia - ela deve ter percebido minha cara de surpresa - ah, os resultados dos aprovados foi divulgado. Alguns alunos criaram um grupo e acharam as pessoas e nós começamos a conversar. Fizemos umas duas festas para conhecer melhor os colegas. Uns dois dias antes do início das aulas nós ficamos sabendo por não lembro quem que teríamos mais uma colega na sala, mas não achamos nada sobre ela, no caso você - ela apontou para mim.
- Ah, isso explica porque eu parecia estar fora de sintonia com os outros da sala. E os dois garotos que você estava conversando no primeiro dia? Conheceu eles no colégio?
- Quem, o Ray e o Phill? Não, conheci eles nos grupos e nas festas. Bonitões, não? - eu corei ouvindo ela chamando eles assim - O Ray consegue as informações do submundo, ele sempre sabe quando a gente não vai ter aula. Tenho certeza que ele tem um X9.
- O que é isso? - Emma olhou para mim, pela primeira vez, com cara surpresa.
- Você não sabe o que essa expressão significa?
Eu tornei a ficar vermelha.
- É um delator. Quem entrega os outros - Emma fez uma cara um pouco séria - quem vaza as informações para outro alguém. Não é legal você ser um X9 - a expressão dela logo mudou para a sorridente de sempre - Mas o Ray tem alguém que passa informações para ele sobre aulas e afins. Ainda vou descobrir como ele faz isso.
- Talvez ele tenha acesso às informações - eu sugeri, feliz com a volta da Emma saltitante.
- Mas como? Ele é aluno como a gente, tem os mesmos acessos que nós.
Dei de ombros. Talvez ele fosse um aluno favorito de alguém. Ou sei lá.
- Ei Yuki, por que você se chama Margô? Por que você não gosta do seu nome? Ele é tão bonito!
Uma fincada no estômago e na minha alma. Sabia que uma hora ou outra ela perguntaria isso.
- Foram as irmãs que me deram esse nome em homenagem à irmã que me encontrou quando eu era bebê. Mas eu não tenho boas lembranças dessa irmã. De todas, ela era a mais cruel comigo.
Cerrei os olhos desejando que Emma engolisse essa história. Errada não estava, mas era só a versão resumida. Isso bastava. Era um pedaço do meu passado que eu não gostava de reviver.
- Então - Emma disse - Espero que você conheça uma Margô tão legal que te faça gostar do seu nome - ela sorriu para mim de um jeito caloroso.
Emma me acompanhou até próximo do dormitório. De lá ela iria para casa.
- Ei ei Yuki. Tá achando algum dos garotos da sala bonito? Vai ficar com algum deles na festa?
Uma curiosidade sobre a Emma: ela é direta. Sem rodeios, ela pergunta diretamente o que quer saber. Certeza que eu fiquei vermelha. Emma provavelmente sabia que eu ficaria vermelha com a pergunta e isso parecia diverti-la.
- Err, não sei. Você diz conversar?
Ela olhou desconfiada para mim. Disse algo errado?
- É, tipo isso - ela disse rindo. Não entendi o que eu disse de engraçado.
Ela se despediu de mim e saiu correndo e saltitando para pegar seu ônibus ou sair do campus. A festa se aproximava e apesar da empolgação de estar numa festa de verdade pela primeira vez, me subiu um pequeno calafrio pela espinha. Pode ser o receio do novo. Mas também pode ser meu instinto de que algo poderia dar errado.